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Arquiforma: setembro 2013




O espaço é o vazio, e a arquitectura é o eco do espaço visível na forma e dimensão. A arquitectura é a premissa da pureza restritiva do nada numa realidade criativa dos sonhos.


Aprender é preciso, ensinar necessário…

Síndrome do vazio conceptual

Quando os postulados não mais regulam a prática de projectar; quando os receituários estilísticos são substituídos por ensaios filosóficos sujeitos à interpretação subjectiva de uma época ou até mesmo de um observador; quando os rótulos, as lições, as cartas ou os manuais não mais cumprem suas funções definidoras de uma actividade projectista que se quer unitária ou, enfim, quando o “Princípio Arquitectónico”, enquanto fonte de referência académica, é colocado sob questionamento... pergunta-se: como deve ser ensinado o Projecto? A resposta natural, por vezes involuntária, que se tem observado em escolas de Arquitectura ao longo das últimas décadas (em especial a partir de meados dos anos 80 e a contra-propaganda pós-modernista), tem sido um estado de indefinição paradigmática no ensino do projecto, caracterizado pela ausência de princípios reguladores consensuais no exercício académico. Essa indefinição formou toda uma geração de arquitectos-educadores, em parte acomodados a atitudes extremas, ora de reprodução, ora de negação de princípios arquitectónicos e didácticos estabelecidos, porém pouco dispostos ou preparados para atitudes de reflexão. Essa acção reflexiva, necessária à renovação do ensino da arquitectura, é definida neste ensaio como a Desconstrução do Princípio.
A ausência de bases conceituais sobre as quais possam ser conduzidas as práticas projetuais no ensino de arquitectura, combinada à fragilidade didáctica resultante da individualidade dos enfoques pedagógicos é definida, neste ensaio, de forma retórica e metafórica, como a "Síndrome do Vazio Conceitual". Essa síndrome, no ensino do projecto, nasceu a partir da reacção dos pós-modernistas aos “paradigmas totalitários da escola Moderna”, combinados à exagerada multiplicidade (que acaba se revelando como ausência) de referencias das escolas precocemente (e muitas vezes equivocadamente) rotuladas de Pós-Modernas.
Como sintoma dessa "síndrome", observa-se um processo de ensino-aprendizagem fragilizado, em que os produtos académicos (projecto elaborado pelo arquitecto-aprendiz), apesar da aparente diversidade plástica, são em boa parte expressões típicas da ausência de crítica e de reflexão projetual. Nesse processo, o arquitecto-educador se torna apenas um mediador de acções projetuais unilaterais, esboçadas a partir de directrizes e programas arquitectónicos previamente estabelecidos, sobre os quais inexistem reflexões ou questionamentos. O aprendiz, futuro arquitecto, limitado ao seu "vazio conceitual", que é agravado pela carência de relações interdisciplinares ou de reflexões teóricas, é conduzido pelas impressões ora extremamente subjectivas (gosto e estilo), ora extremamente objectivas (normas, legislação e catálogos técnicos) que são apresentadas pelo mestre. Constrói-se, a partir daí, o seu produto académico – o projecto – de forma hermética e pouco reflexiva. Um produto de múltiplas influências, porém de frágeis confluências, que ao final é avaliado e rotulado pelo educador segundo medidas de desempenho que estão igualmente situadas ora nos extremos da subjectividade (gosto), ora nos extremos da objectividade (normatização).
O arquitecto-educador, quando extremamente estilístico, apresenta dificuldades na apreensão de uma visão crítica da Arquitectura enquanto disciplina reflexiva, e em geral é limitado por fortes influências de formação pessoal (área de interesse) ou institucional (escola – no sentido amplo da palavra – da qual é originário). Como consequência, elege estilos e expressões plásticas que considera como "referências estilísticas" ideais. O produto académico ideal, na visão desse educador, está situado dentro do universo imaginário e simbólico formulado pelo mesmo, e qualquer expressão que se distancie desse ideário é julgada inoportuna.
A normatização extrema, por outro lado, é reflexo da fragilidade do educador diante da formação de conceitos teóricos e da pouca familiaridade em relação à crítica da arquitectura associada ao acto de projectar. Em geral, esse arquitecto-educador é proveniente de uma realidade prática inserida em rotinas de repetição e de normatização, e consequentemente pouco reflexivas. Para esse educador o bom produto académico é o projecto devidamente formatado, segundo as normas, as directrizes, os padrões pré-definidos e a necessidade de mercado.
Nos dois casos o processo de aprendizagem, assim como a capacidade de apreensão de conceitos e de avaliação crítica do objecto arquitectónico, por parte do aprendiz, são ignorados na rotina de ensino do projecto de arquitectura. Nos dois casos a autonomia criativa, a percepção contextual e a visão crítica, elementos essenciais na formação do arquitecto e urbanista, são suprimidos em função da tarefa de reprodução de baixo conteúdo conceitual (seja estilística ou normativa). Essa fragilidade conceitual, quando presente no ensino do projecto de Arquitectura, se expressa não apenas na fragilidade dos produtos, mas principalmente no hermetismo do processo de aprendizagem.

Reconstrução do conhecimento

Sob qual princípio devemos projectar? Devemos, enquanto arquitectos-educadores, ensinar princípios ou apresentar as bases conceituais necessárias para a formulação e a reflexão sobre os mesmos?
No caso específico do princípio arquitectónico a desconstrução do princípio como artifício pedagógico significaria não necessariamente a negação do Renascentista, do Barroco, do Ecléctico, do Moderno ou do Pós-Moderno, mas o conhecimento e a reflexão sobre as bases conceptuais que dão suporte a cada uma dessas expressões, de forma a construir novos princípios. Esses princípios não estarão necessariamente vinculados a estilos, mas a métodos de apreensão dos contextos (social, ambiental, económico, urbano...) e de concepção do espaço arquitectónico. Pode-se observar, por exemplo, que apesar de aparentes divergências estéticas, o Clássico e o Moderno estão ligados a certos princípios arquitectónicos que são comuns, ou pode-se concluir, como sugere David Harvey, sobre o pós-modernismo, pela ausência de qualquer princípio. Desconstruir o princípio, portanto, seria reflectir sobre o acto de projectar, o processo, ao invés de concentrar a atenção apenas no produto. Sob essa perspectiva, não haveria, no ensino do projecto, estilo a ser ignorado ou laureado, não haveria corrente a ser predominante ou marginal. A decisão estilística seria parte de um processo de construção do conhecimento, resultante da reinterpretação de conceitos.
Nesse processo de (re)aprendizado não apenas as correntes estilísticas são objecto de reflexão, mas também a própria contextualização do que será projectado, isto é, a conceituação da Arquitectura enquanto objecto de múltiplas dimensões: espacial, temporal, social, económica, simbólica, etc. Quando se trata do princípio metodológico, referimos-mos não apenas à revisão do método de projectar, como simulação académica de uma actividade profissional futura, mas especialmente à revisão do método de ensino. Afinal, o saber e as ferramentas metodológicas associadas à execução do projecto, são, em geral, confundidas com as ferramentas do ensino do projecto. Entre o arquitecto e o educador de arquitectura há uma lacuna didáctica que precisa ser preenchida com a reflexão sobre o método e seus princípios.
Sob o ponto de vista didáctico-pedagógico, portanto, o processo unilateral do tipo pergunta-resposta (programa-projecto), deveria ser substituído por uma relação mais complexa, porém mais coerente com o processo de aprendizagem: conceitos-reflexão-ideia. Neste caso, o projecto, enquanto disciplina, seria o resultado dessa tríade cíclica, que reforça o sentido de processo, ao invés do simples produto, através da reflexão e da apreensão dos conceitos, da reflexão sobre o tema e sobre os princípios, da formulação e reformulação das ideias, num ciclo dinâmico da elaboração do projecto.

Projecto: criação e desenvolvimento

Os distintos níveis das disciplinas de Projecto, ao longo da grade curricular de um curso de Arquitectura e Urbanismo, não podem representar apenas a evolução da complexidade programática, temática, estrutural ou funcional. Deve-se entender que há diferenças na forma de se apreender o espaço e de lidar com a arquitectura enquanto objecto de aprendizagem. Dessa forma, uma casa mínima não é necessariamente um programa a ser tratado nos projectos preliminares, assim como um complexo multifuncional não é tema exclusivo dos projectos finais. Complexidade programática é apenas um dos critérios, que depende de definições e precisões entre processo e produto.
O tema casa, por exemplo, pode estar presente no primeiro e no último semestre da estrutura curricular, variando neste caso o enfoque metodológico, o processo de condução dos trabalhos e a abrangência do produto final. A sua concepção, a reflexão, e a formulação despretensiosa de ideias relacionadas ao sentido de habitabilidade, de conforto, ou até mesmo o simbolismo que se expressa a partir da ideia de casa, enquanto refúgio ou abrigo são elementos mais importantes, em determinados estágios da aprendizagem, do que o tradicional conjunto de elementos técnicos graficamente apresentados, contendo a representação de um projecto arquitectónico.
Da mesma forma, temas abstractos ou pouco usuais podem ser importantes fontes de referência criativa, especialmente quando o objectivo é concentrar a atenção na criatividade, ao invés da solução programática. Um exercício académico em Projecto, portanto, não pode ser lançado como uma pergunta que guarda uma resposta única, precisa e objectiva. Trata-se de um exercício provocativo, em que se estimula a potencialidade criativa, associada à multiplicidade de possibilidades. Em alguns casos, talvez a resposta final não seja o mais importante, mas os caminhos utilizados na reflexão sobre o tema.
A disciplina de Projecto, apesar de ser tradicionalmente definida como “disciplina de atelier", portanto conduzida de forma prática e experimental, não pode estar dissociada da apreensão teórica ou da exposição dos conceitos. Afinal, considerando o processo de elaboração como algo tão importante quanto o produto em si, no processo de aprendizagem do projecto a tradicional "caixa preta" do processo criativo é aberta, dissecada; e o processo que em geral é hermético e unilateral passa a ser desvendado e acompanhado em cada uma das etapas.

Directrizes ao ensino do projecto de arquitectura

As grandes escolas de Arquitectura são reconhecidas mais pelos estilos resultantes de sua formação científica e artística (como é o caso da Bauhaus em relação ao Moderno) do que pela revolução metodológica no ensino do projecto. Num contexto contemporâneo de reflexão o foco não deve ser o estilo, e sim o método. Não apenas o método de projectar como rotina de execução de produtos planeados, mas principalmente o método de ensino como ponto de partida para o exercício criativo. As aparentes contraposições entre o Neoclassicismo, Modernismo, Pós-Modernismo, Deconstrutivismo e tantos outros “ismos”, usualmente interpretados na história como uma sequência de rupturas conceptuais, deveriam ser exploradas no ensino do projecto como reflexos da contínua e necessária revisão conceptual resultante das mudanças nas dinâmicas sociais, económicas, industriais e políticas de cada época. Cada “novo” conceito, portanto, escreve-se como em um palimpsesto, em que o pensamento de cada tempo é impregnado pelos vestígios do tempo anterior.
Dessa forma, e com fim de se evitar a "Síndrome do Vazio Conceptual", que se tem alastrado nas escolas de Arquitectura, e de maneira a estabelecer-se um processo de construção do conhecimento a partir de uma desconstrução criativa de princípios, algumas reflexões são necessárias, como fundamentos para o ensino do projecto de Arquitectura:
Princípio Processual – o ensino do projecto deve atentar para o processo, como essência do produto; Princípio da Complexidade Evolutiva – a evolução dos projectos na estrutura curricular não deve corresponder necessariamente a uma evolução programática e dimensional, mas à evolução da complexidade contextual, em que são gradualmente acrescentadas – em cada nível de aprendizado – novos condicionantes do projectar;
Princípio Reflexivo – o ensino do projecto, nas escolas de arquitectura, não deve ser orientado apenas para o mercado, que é instável e imprevisível, mas pelas demandas sociais, pelos avanços tecnológicos e pelas perspectivas de futuro;
Princípio da Criatividade Analógica – devem ser incentivados os instrumentos de criação projetual que exploram o caminho directo entre a cognição e a materialização da ideia: croquis (figuras 1 a 7) e maquetes físicas. Esses instrumentos analógicos (como ferramentas de criação, e não de apresentação), pelo seu vínculo físico e directo com o processo criativo e cognitivo, e se complementam – no projectar – aos mais avançados instrumentos tecnológicos desenvolvidos através da mediação digital;
Princípio da Criatividade Digital – a tecnologia computacional pode oferecer ferramentas que vão além da mera representação gráfica, de forma que o uso de CAD no ensino do projecto deve ser estimulado como ferramenta de apoio à criação, e não apenas de digitalização ou reprodução;
Princípio Interdisciplinar – as disciplinas de projecto são a espinha-dorsal de qualquer curso de Arquitectura e Urbanismo, mas não são auto-suficientes, de forma que a interdisciplinaridade é uma prática essencial para a completa apreensão das diversas faces (histórica, tecnológica, social, simbólica, ambiental, etc) da disciplina;
Princípio Conceptual – teoria e prática são elementos indissociáveis em qualquer processo de aprendizagem, de forma que o ensino do projecto deve trazer a discussão teórica para o ambiente pragmático da concepção arquitectónica, seja através da discussão temática em seminários, elaboração de estudos de caso, memoriais descritivos ou exposição de motivos, como parte essencial da produção académica das disciplinas de projecto;
Princípio da Diversidade Pedagógica – a diversidade de enfoques e de experiências dos arquitectos-educadores de Projecto de Arquitectura deve ser observada como uma potencialidade, e não como uma limitação didáctico-pedagógica. No entanto, deve-se ressaltar a importância de se criar ambientes e momentos de discussão e exposição de ideias, de metodologias, de processos de avaliação e de fundamentação conceptual, a fim de que a formação do arquitecto-aprendiz seja concebida como um todo articulado e conscientemente inter-relacionado, permitindo também a difusão de experiências bem-sucedidas, assim como revisão das experiências mal-sucedidas;
Princípio Contextual – deve ser garantido a contextualização do aprendizado à realidade social, ambiental, económica, cultural e geográfica do lugar; a experiência académica do professor e do aluno no ensino deve ser complementada pela extensão, como forma de socialização das actividades e dos produtos académicos, garantindo a aplicabilidade concreta do conhecimento adquirido;
Princípio da Não-Genialidade – o culto à genialidade é um dos grandes vícios do ensino do projecto, que usualmente elege o extraordinário como expressão única e válida de fazer arquitectura. Ressalta-se indevidamente, nesses casos, a individualidade e a excepcionalidade, gerando uma arquitectura de “salto-alto”, da excepção, de pouca permeabilidade social. Como consequência, a arquitectura do quotidiano, em que o singular e o extravagante, deveria ceder lugar ao que é anónimo, ordinário e económico em favor da urbanidade, acaba sendo esnobada em função da excepcionalidade e do individualismo, e termina por engrossar a mancha da informalidade e distanciando ainda mais o arquitecto da produção do espaço das cidades.
“Desconstruir o Princípio” no ensino de projectar é construir o conhecimento a partir das bases conceptuais que o sustentam. Desconstrução, neste sentido, não é destruição ou negação de uma referência, mas a decomposição ou dissecação de uma estrutura em seus elementos fundamentais, e a partir daí a reconstrução do objecto a partir de uma reflexão contextualizada no tempo e no espaço. Os princípios podem ser metodológicos, conceptuais ou didácticos e precisam ser desconstruídos não apenas pelo aprendiz, mas especialmente pelo educador.
Em geral, o produto da aplicação de Princípios Arquitectónicos, quando observados sob o olhar histórico-conceptual, é o estilo. Este, no entanto, tende a ser apreendido como expressão superficial de um processo de repetição estética, em que a motivação conceptual é ignorada em função da superficialidade da expressão plástica.
Enfim, o ensino do projecto não deve ser confundido com a disseminação de estilo ou propagação de princípios arquitectónicos pré-estabelecidos. A reflexão sobre o método de projectar tem sido substituída pela formulação superficial do que se denomina partido arquitectónico, expressão apropriada para acolher a diversidade de expressões dos projectos, mas também indevidamente utilizada para mascarar a eventual falta de propósitos na formulação dos exercícios de projectar. É preciso desconstruir os princípios metodológicos da concepção projectista, conduzindo o arquitecto-aprendiz às bases elementares da Arquitectura enquanto objecto de aprendizagem, afim, de que se possa construir conhecimento a partir da informação.

Texto adaptado [Fabiano Sobreira]



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