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Arquiforma: janeiro 2011




O espaço é o vazio, e a arquitectura é o eco do espaço visível na forma e dimensão. A arquitectura é a premissa da pureza restritiva do nada numa realidade criativa dos sonhos.


O arquitecto... de salvador a testa-de-ferro


Num dos números anteriores da Artitextos, foi publicado um escrito meu em que tecia críticas ao uso e abuso da teoria da arquitectura a desoras; quer por parte dos arquitectos quer, sobretudo, pelos não arquitectos; neste domínio aberto a todos. Surpreendentemente, as reacções de maior acrimónia vieram, não destes últimos, o que até seria natural, mas de arquitectos. Dos verdadeiros, dos genuínos. É claro que interpretei a bizarria pelo simples facto de a prosa ter tido uma escassa audiência.

Talvez apenas por aqueles a quem pedi o favor de uma opinião. Se outros houvera que a tivessem lido e ter-me-ia colocado num sério aperto. Na tentativa de apaziguamento dos espíritos que se sentiram pessoalmente lesados, afirmei-lhes que se a reacção a uma crítica à teoria tinha levantava uma tal celeuma, iria penitenciar-me. Por isso, como acto de contrição, registaria em próximo rabisco a minha visão desencantada sobre a prática da arquitectura. Para ficar bem com o diabo, iria afrontar os deuses.

A experiência anterior ensinou-me que estou, uma vez mais, a dar o passo maior que a perna, pelo que deverei remeter-me desde já a uma atenta e prudente guarda.

Tal como a compra de clubes de futebol ingleses na bancarrota por valores astronómicos, também a construção civil é hoje uma das maiores indústrias de lavagem e branqueamento do dinheiro sujo. De norte a sul e de leste a oeste. Perto de nós, mas numa escala incomparavelmente superior à nossa, está o exemplo acabado das orlas mediterrânicas espanholas.

Diverte-me muito a insinuação que a hecatombe do subprime no imobiliário americano e europeu, e de todos as outras fraudes ainda por vir à tona, foi coisa de ineptos ou uma onda de súbita e irreprimível cupidez. Isso só colhe como nuvem de fumo nos teatros de sombras chinesas que são os paraísos fiscais (offshores, para os íntimos), quando se sabe que milhões ganharam com isso biliões.

Atribui-se a diatribe a fantoches, a anhos sacrificiais. Na verdade, não se conhecem os rostos de quem realmente gere e manipula esta indústria de face, afinal, tão benigna.

Nada que se pareça com a do armamento (que o digam as pombas brancas da Suíça e Suécia). Nada que se pareça com a da droga (pobres dos miseráveis agricultores colombianos e afegãos). Nada que se compare com a do tráfico de carne humana (veja-se os rebanhos de escravos sexuais e casulos de órgãos mantidos vivos, para transplantes no 1º mundo). Nada que se assemelhe aos programas nucleares iraniano e norte coreano (atestam-no as hordas de esfomeados que os financiam). Nada que se aproxime do programa espacial chinês, que enquanto enviava três «chinonautas» a conhecer a órbita terrestre (não sei com os designar – os americanos têm os astronautas e os russos, cosmonautas), cá em baixo andavam eles a envenenar com leite e chocolates, milhões de crianças. As suas e as dos outros.

Não, definitivamente a indústria da construção civil é actividade séria e respeitável. E o arquitecto recomenda-se!

Estabelece-se uma gramática, selecciona-se o material e a tecnologia construtiva, define-se o destinatário – um certo homem novo – e, por pragmatismo, seleccionam-se as «cabeças de cartaz» que dão corpo ao novo arquitecto, que conduzirá as massas à felicidade e prosperidade, só possíveis nas “urbanidades” que estavam a ser inventadas por esse mundo. Foi o período heróico do arquitecto/salvador. Os patrões destes visionários estimavam-nos e para os manter em bom recato, de quando em vez, permitiam-lhes que construíssem alguma coisa. Era um júbilo – por cada esboço nascia uma obra-prima e de cada traçado, uma proposta de cidade ideal. A guerra seguinte, a maior de todas [até agora], haveria de trazer novas e inesperadas oportunidades. A razia foi tão completa, que tudo ficou por fazer e tudo se pôde fazer. A urgência, o descontrolo e a impunidade de que beneficiaram os agentes, resultaram na vertigem de uma reconstrução assente na ausência total de conhecimento e previsão, de que as metástases que estão agora a destruir a civilização ocidental – já em estado de pré-guerra civil urbana – são as directas e iniludíveis consequências.

Dir-se-á que tudo é culpa do poder, mas os arquitectos e urbanistas que estiveram nisto desde o princípio e na primeira linha, sabiam bem que serviam más políticas e piores políticos. Lembremos o que aconteceu para lá da cortina de ferro, com os arquitectos do «proletariado» a projectarem casas, edifícios e cidades, que só conseguiram promover o alcoolismo crónico e endémico. Será por isso que, ao contrário dos antigos e esforçados arquitectos egípcios, os de agora recusam, exigem mesmo, não ficar «enterrados» em tais mausoléus. Pudera. Mas a História há-de sempre bater-nos à porta para o acerto de contas.

Os patrões dos arquitectos são ainda os mesmos de há cem anos. Mais confortados e robustecidos, porque ao colo de uma risível democracia, que apenas concebo como rasa oclocracia. O exercício da prática profissional funda-se, actualmente, na afirmação do poder particular assente, ou no esmagamento de outro particular ou, pior, da obliteração do interesse colectivo, por via da relação privilegiada entre a política e o capital. Acresce que o arquitecto ocupa os dois lados do binómio; o de projectista – no campo privado, e o de técnico decisor – nas instâncias públicas. E é esta dupla face, que inviabiliza qualquer hipótese de inocentar a classe.

Faço testemunho de parte um diálogo travado há alguns anos, por debaixo da latada de um tasquito algarvio, com um velho amigo e querido colega. À pergunta sobre o que tinha ele andado a fazer agarrado ao estirador durante os últimos 30 anos, olhou-me fundo nos olhos e declarou: “a ajudar a dar cabo do que resta...”

Carrego comigo o amargo de, por não saber que seria aquele o nosso último medronho, não ter tido a oportunidade de lhe pedir desculpa pela inconveniência da pergunta.

O arquitecto que é bem sucedido hoje, dilui-se como sócio minoritário em mega escritórios, ao qual o maioritário dá o nome e a cara, assegurando o marketing operacional necessário ao sucesso empresarial do grupo. Os pequenos e médios ateliers extinguiram-se com os dinossáurios da profissão, tentando remar contra esta maré.

Ao mais alto nível de intervenção não somos hoje, urge confessá-lo, mais do que testas-de-ferro de quaisquer uns que com dinheiro por desinfectar, entendam fazer o que quiserem, onde quiserem, contornando o que for preciso e anulando quem se intrometer.

A nossa assinatura, que já foi sagrada, está ligada a incontáveis iniquidades arquitectónicas e urbanísticas, que nos envergonham.

Tentamos disfarçá-las: na arquitectura, pelo surrealismo psicadélico dos projectos; no urbanismo, pela paulatina e sobranceira destruição dos habitats, na forma e na lógica de grandes traçados.

Peço licença para alterar o rumo do tema, pois o evento levado a cabo no último dia 8 de Outubro na FA, em que a Escola parou para reflectir sobre o Processo de Bolonha, merece mais a atenção.

Dado não me ter sido possível participar nesses trabalhos e por entender que uma publicação da faculdade pode, e deve, ser o veículo de transmissão e discussão destas matérias, creio ser legítimo registar a opinião pessoal, sobre o que considero ser um prego mais no caixão da formação do arquitecto, já de si muito depauperada.

Comecei por verificar a irónica coincidência entre o debate e o momento de estupor generalizado que se vivia, assistindo-se ao descalabro do sistema económico e financeiro mundial. Eu, que sou um ignorante do assunto, inventei para mim uma razão muito simples. Tudo aconteceu, porque tinha de acontecer. Porque os especuladores internacionais tinham decidido lucrar com a riqueza do mundo que, diziam, ser 10, 100, 1 000, ... vezes superior à que é real, e nesses dias a verdade (que não apenas a do Eça) ficou nua. Mas ao contrário desta, aquela não é nada bonita.

Os inventores da globalização ficaram expostos e a sua lógica desmascarada. Quando os ventos sopram de feição, a globalização serve aos que mandam nela; quando os ventos crescem para furacões, os que mandam na globalização zurram que é tempo de ser cada um por si!

Vem isto a propósito para recordar que a Declaração de Bolonha não é mais do que a tentativa de «globalização» do ensino superior no espaço europeu. Por rigor e prestando-lhes homenagem, é forçoso reavivar a memória e relembrar que, na sua génese, Bolonha foi um genuíno e generoso movimento encabeçado por distintos académicos, que esboçaram o quadro de articulação em rede de algumas universidades europeias. Seria a trave mestra de um sistema que, de forma segura e consistente, se alargaria com a adesão de novas escolas que aceitassem integrá-lo, por via da harmonização protocolada das respectivas organizações internas. Tudo dentro do princípio sacrossanto da «autonomia universitária», consagrado entre povos civilizados. — Era isto o que estava no espírito dos seus primeiros mentores. Evidenciada a justeza do princípio, os governantes viram neste esquema o pretexto e a oportunidade de se imiscuírem no assunto e resolverem alguns problemas delicados que tinham entre mãos, como o financiamento público das universidades.

A partir daí, o destino de Bolonha ficou traçado. A guarda parental do processo foi retirada aos legítimos progenitores e entregue aos... experts!

[Abro aqui um parêntesis dedicado a esta casta de que cultivo o maior resguardo, já que não são mais do que os “comissários políticos” do poder, nas instituições. Como agentes infiltrados e em estado letárgico, são periodicamente acordados, estimulados e postos ao serviço das chefias, sempre de olho num convite para as cíclicas «danças das cadeiras». – As universidades estão pejadas deles.]

Foi esta “expertise” que acabou a conduzir o processo de Bolonha até onde ele nos trouxe.que me deixa estarrecido, é como um processo tão profundo, uma tal alteração nos métodos e nas práticas universitárias (que já não eram as melhores), que coloca uma tão grande pressão responsabilidade sobre o aluno, foi decretado e será implementado como se para trás não houvesse nada. Como se antes da universidade não estivesse um secundário moribundo. Não existindo qualquer articulação entre os dois ministérios que superintendem estes ensinos, criou-se um projecto virtual de reforma. Como se fosse possível redefinir, redesenhar o ensino superior, se acautelar e certificar previamente, o sucesso dos níveis de aprendizagem anteriores. Conhecem-se os frutos da miopia e ligeireza das políticas que tornaram a “avaliação de conhecimentos” e as “estatísticas do sucesso escolar”, desde a primária até ao fim do secundário, um exercício que só não incomoda o Ministério, mas que envergonha todos os interessados – professores e alunos (os pais há muito que se demitiram das suas responsabilidades).

Pois, a primeira consequência da implementação do Processo de Bolonha será a mais do que certa contaminação do ensino superior por aquelas desgraças. A redução do nível de exigência na Universidade, ao contrário daquilo que se pretende fazer crer e a despeito do esforço, da vontade e da diligência dos professores, vai ser uma inevitabilidade.

Todas as reformas estão por fazer, mas começar por onde se começou é inexplicável e inaceitável. Presumir, também, que o estado da universidade portuguesa pré-Bolonha é bom, é esquecer que ela não é mais do que o reflexo da situação geral do país. A necessidade de repensar os modelos de funcionamento de todos os sistemas estruturantes da sociedade – neste caso o da educação e formação avançada – não só é necessário, como já vem tarde. Este regime parece ainda não ter percebido, que não conseguirá acomodar por muito mais tempo outros insucessos.

Mas afinal, o que é isto de Bolonha?

Não tendo os tais experts engenho para melhor, não é mais do que o sistema anglo-saxónico travestido do inocente nome latino. Se me fosse permitido, proibia já a associação de nomes de cidades honestas a estes devaneios. Que o diga Lisboa e o Tratado de que já ninguém quer falar.

Esta «bolonhice» é o bom e velho sistema de Oxford e Cambridge, massificado, sem pedigree e sem os seus custos. Ou melhor, sobre os custos se falará lá mais para diante, pois o que está no recôndito daqueles cerebelos é a empresarialização das universidades. Não dos institutos superiores ou das escolas politécnicas, note-se. Das universidades. Tenho a certeza que as mentes brilhantes que nos têm guiado ao céu vai para 35 anos, nunca entenderam, sequer, quais as diferenças existentes nos vértices deste triângulo.

Aviso prévio: se não formos capazes de nos adaptarmos a Bolonha, vêem aí uns papões – na dupla acepção da palavra – e, zás, engolem-nos, digerem-nos e expelem-nos. Argumentos: unificação das estruturas curriculares, comparabilidade, livre circulação de alunos e professores, competitividade, formação para a vida, etc., etc.; tudo coisas a subscrever de cruz e, finalmente eis que chega ela, a grande, a enormíssima, a simplesmente “investigação”.

Entro em assunto grave. Devo, pois, medir bem as palavras com que me vou expressar. — NÃO SEI O QUE É ISSO DE “INVESTIGAÇÃO EM ARQUITECTURA”, NEM ADMITO QUE NÃO ARQUITECTOS CONTINUEM A INSISTIR EM IMPINGIR-ME O QUE TAL POSSA SER. QUANTO AOS ARQUITECTOS, AGUARDO ANSIOSO PELA DISCUSSÃO.

Será coincidência, certamente, mas muitos daqueles que mais vejo clamarem pela «investigação», são os de quem menos se conhece a obra. A obra de arquitectura construída, entenda-se; não os papers, artigos e projectos virtuais.

Nas ciências e nas tecnologias, a investigação publicada e divulgada entre pares, estabelece níveis de desempenho cada vez mais elevados e complexos, que são testados e percorridos por todos aqueles que virão a contribuir com novas descobertas o que, por sua vez, ajudará a colocar essa ciência e/ou tecnologia em patamar sucessivamente mais alto. É assim desde a pedra lascada.

Referi, especificamente, a investigação publicada e divulgada. Espero ainda um dia ver uma proposta séria de doutoramento, que se atreva a avaliar e determinar “cientificamente”, qual o verdadeiro impacto na ARQUITECTURA, da investigação que se faz e publica em arquitectura?

Quem dela toma conhecimento e quem beneficia, melhorando a sua prestação como aluno, investigador ou arquitecto? Por quem, onde e porquê se publica essa investigação? Estará para além da obrigação contratualizada pelo complemento orçamental e de financiamento de um projecto? Ou vincula-se no compromisso de apresentação a provas públicas académicas?

Quanta dessa publicação é, realmente, pertinente para o ESTADO DA ARTE?

Estas são perguntas, talvez incómodas, mas que se devem começar a fazer, porque de há muito que toleramos ser bitolados por parâmetros que nos são estranhos. É tempo de reagirmos por convicções, sem receio dos tais experts. Ainda que eles andem muito por aí.

Passemos agora à divulgação da investigação, que é a componente lúdica do trabalho do investigador. O arquitecto tem dois defeitos que projecta como virtudes: é vaidoso e palavroso (temo que já tenha escrito demais), e é neles que assenta o processo de divulgação da sua investigação. De preferência como convidado. Muito convidado. Uma boa rede de contactos pessoais, sociais e profissionais, é imprescindível. Depois começa o jogo, que ninguém reconhece, o do «agora convidas-me tu para eu ir à tua universidade, depois convido-te eu para vires tu à minha. Ah, e não te esqueças – quando vieres traz um amigo também, que eu prometo-te retribuir em dobro, combinado? Já agora e porque estamos a falar nisso e aqui ninguém nos ouve, o meu orientador estrangeiro, excelente e interessante pessoa, que perdeu tanto tempo comigo ao e-mail, não pode ser convidado também? É que de uma penada resolvo dois problemas: o dele e o meu».

Entretanto, com tanta divulgação, tantas amizades, tanto convite e tantas ausências, os alunos arriscam-se a ficar sem os professores/investigadores, porque quase sempre equiparados a bolseiros.

E a Escola exulta: somos finalmente reconhecidos para além da Ajuda. Os estudantes é que ficarão sem a dita, entregues a monitores e assistentes, seja lá qual fôr o grau que estes tiverem.

Mas como Bolonha veio promover a fácil circulação, o verdadeiro must será ver no futuro os alunos a calcorrear a Europa, na peugada do seu professor predilecto.Há uma frase que começou por ser soprada há tempos por uns bem pensantes e que é hoje debitada a torto e a direito por qualquer tolo, que diz que “a crise é uma janela de oportunidades.” Não sei porquê, mas sempre que a oiço revejo aqueles programas da Natureza que passam na TV, em que os super predadores – sem alienarem nada da portentosa aura – seleccionam apenas os muito novos, os muito velhos, ou os muito doentes, para suas presas de comezaina. Pois é... a crise é sempre uma janela de oportunidades. — Então não há-de ser?

Prefiro outra, honestamente radical e afirmar que a humanidade está multiplicada (no mínimo), por dois e que se metade dela se eclipsasse agora mesmo, num piscar de olhos, não viria daí mal nenhum à espécie. Isto, desde que a família, os amigos, eu e o leitor destas linhas, estivéssemos todos na metade sobreviva, claro está.

Poupando à tutela eventuais diligências na averiguação do que, afinal, andarei eu aqui a fazer, devo manifestar que me sinto plenamente capaz e habilitado a trabalhar com qualquer formato que me seja imposto. Simplesmente com este, receio um maior insucesso e uma imensa frustração no horizonte; que antevejo como inevitáveis, na situação actual e com estas condições objectivas. Só não receio opinar contra a corrente, fazendo votos fervorosos de que possa ser eu a estar profundamente errado. É que tenho boas razões para querer apostar forte contra mim: duas filhas para cobaias desta reforma.

Mais uma reforma! Mais um falhanço?

Pela primeira vez, apetece-me subscrever a tal frase asnática: e se nós aproveitássemos a crise para deixarmos cair este Processo de Bolonha?

p.s. – Tive um vislumbre do que poderá ser, afinal, a “investigação” em arquitectura: é praticá-la. – Ética e civicamente.

Autor do texto - José Jacob Cabido
Arquitecto, professor auxiliar da FAUTL - 03 de Abril de 2009 - ArtiTextos



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